S.T.A.L.K.E.R 2: como a GSC Game World enfrentou perigos da vida real

Eles estavam no limite há meses. À medida que o inverno avançava e as tropas russas se acumulavam na fronteira da Ucrânia, eles prepararam uma frota de ônibus bem abastecidos, cujos motoristas ficavam parados 24 horas por dia do lado de fora da sede da empresa. 

Quando as tropas invadiram em 24 de fevereiro de 2022, eram 4 horas da manhã e, naquela madrugada estranha, a GSC Game World já havia ativado seu plano de emergência para realocar seus funcionários e suas famílias para uma pequena cidade perto da fronteira ucraniana.  

Para este estúdio de games, isso não era um jogo. 

“O primeiro dia foi caótico e cheio de nervosismo. Para a maioria das pessoas, começou com ligações frenéticas de manhã cedo para parentes ao redor o país … Pergunte a qualquer pessoa como ela descobriu e ela lhe dirá como se tivesse acontecido há 10 minutos – algo gravado na memória para sempre”, diz Mariia Grygorovych, diretora criativa da GSC. 

“Foi provavelmente o pior dia de nossas vidas. Com certeza um dos piores. Eu não diria que houve pânico total. Tivemos que manter o foco a cada segundo. O custo emocional atingiu mais tarde, quando a maior parte do processo de evacuação foi concluída. Mas o medo era real, assim como o perigo.”

“Percebi que tenho muito a perder” 

Esse perigo deixou o produtor técnico Vlad Lebedynets sem outra opção a não ser fugir de seu país para salvar sua família. “Eu só queria trazer minha esposa grávida para um lugar seguro. Todo o resto não importava”, diz ele. “Percebi que tenho muito a perder.” 

Eles faziam parte da primeira onda de funcionários e suas famílias – cerca de 500 no total – que deixaram Kiev, capital da Ucrânia, antes de se estabelecerem em Praga, capital da República Tcheca.

Quando ele, sua esposa e sua mãe se aproximaram da fronteira húngara a pé, na neve, ele trouxe apenas uma mochila para carregar um processador de placa de vídeo para seu computador, dois pentes de RAM e algumas camisetas. 

“Tudo o que eu precisava estava nele”, diz Lebedynets. “Eu não sou tão apegado às coisas.” 

Vlad Lebedynets (Foto de Jamie Florance) 

Na época, no entanto, sua mãe descobriu que era muito apegada à Ucrânia para deixá-la. 

“Ela teve um colapso quando estávamos prestes a cruzar a fronteira e voltou para Kiev. Ela estava em um trem na noite em que os atentados começaram. E depois de alguns dias, um foguete atingiu o prédio em frente à sua casa. Então, ela decidiu se juntar a nós”, diz Lebedynets. 

Mas seu pai de 54 anos ficou na Ucrânia. Ele serviu nas forças armadas quando era muito mais jovem e recentemente foi recrutado para o exército. “Claro que estou preocupado com ele. Não há nada que eu possa fazer. Acho que é a vida”, diz ele, encolhendo os ombros. 

Alguns funcionários do GSC decidiram defender seu país e se ofereceram para servir nas forças armadas. Amigos e parentes morreram. Cerca de 200 integrantes do estúdio ainda estão na Ucrânia. 

Para muitos funcionários, incluindo Lebedynets, que está na indústria de jogos há uma dúzia de anos, os últimos três com a GSC, o foco no trabalho se tornou uma distração bem-vinda. 

“Trabalhar no jogo, atentar a problemas para encontrar soluções, ajudou a me manter um pouco são”, diz ele. “É uma grande aventura. E honestamente, às vezes me pergunto como diabos conseguimos passar por tudo isso. Uma equipe é sempre sua segunda família e é sua segunda casa.” 

Sua filha agora tem 2 anos e seu jogo está prestes a nascer. 

Congelado no tempo, cheio de surpresas 

A GSC está na reta final de terminar S.T.A.L.K.E.R. 2: Heart of Chornobyl*, a sequência de uma premiada franquia para PC que vendeu mais de 15 milhões de cópias em todo o mundo. Originalmente programado para lançamento em 2022, ele finalmente estará disponível em 20 de novembro no Windows 10/11, Steam, Xbox e com Game Pass.    

Criar uma versão maior e melhor de um jogo amado nunca é fácil, mas essa tarefa já árdua foi desequilibrada por uma invasão e guerra que forçou uma evacuação para outro país e a recriação de seu estúdio lá. 

Embora os jogadores de PC possam estar familiarizados com as iterações anteriores do jogo, os recém-chegados podem precisar de um pouco de contexto.

Primeiro, o nome: não é o que você pensa. Stalkers (perseguidores, em uma tradução livre) são caçadores de recompensas que invadem a zona de exclusão pós-apocalíptica do game. Eles precisam adquirir comida, água, remédios e outros suprimentos enquanto se defendem de mutantes e anomalias mortais neste jogo de tiro em primeira pessoa. 

Eles são os personagens principais que estão tentando sobreviver na zona, o local de um desastre na usina nuclear de Chornobyl* em 1986 (e no jogo, isso acontece novamente em 2006). Os fãs hardcore deram aos stalkers uma espécie de culto de seguidores, com cosplays em convenções e eventos temáticos. 

No ambiente árido do jogo, você é um explorador em um lugar congelado no tempo, mas cheio de surpresas. Aqueles atraídos por filmes de terror e ação e aventura, bem como ficção científica distópica, verão o apelo deste título não linear. 

A maior diferença em relação às versões anteriores de S.T.A.L.K.E.R. é a adição do motor gráfico Unreal Engine 5, uma plataforma de criação 3D que fornece ferramentas e recursos para desenvolvedores de jogos criarem mundos expansivos como a zona de exclusão com fidelidade visual sem precedentes. 

No passado, mover-se entre os principais locais exigia que os jogadores baixassem esses ambientes, o que interrompia essa jornada de descoberta. Agora, este mundo aberto flui de um lugar para outro sem a necessidade de esperar que novos locais sejam carregados, proporcionando aos jogadores uma experiência verdadeiramente imersiva. 

Lebedynets cresceu jogando em PCs e se lembra de jogar o primeiro S.T.A.L.K.E.R. quando estava no ensino médio. 

“Um cara da minha classe trouxe o jogo para a escola. Tinha acabado de sair naquele dia. Corri de volta para casa para meus pais para pedir dinheiro, prometi fazer as tarefas. Corri para a loja mais próxima e comprei uma edição de colecionador, minha primeira cópia licenciada do jogo. Prometi à minha mãe manter meu quarto limpo por um mês”, brinca. (Isso durou três dias.) 

“Eu adorei quando era criança e recriar isso em um novo jogo foi um desafio, mas acho que conseguimos.” 

Pela primeira vez na história da série, o novo jogo será lançado nos consoles no mesmo dia do lançamento para PC. 

Era importante para o GSC tornar o jogo o mais preciso possível para o Chernobil da vida real. Antes da invasão, quando o estúdio embarcou pela primeira vez na sequência, todos que trabalhavam no estúdio visitaram a zona de exclusão, que era popular entre os turistas e a apenas uma hora de Kiev. 

“A equipe precisava entender com o que estava trabalhando – sentir este lugar único e sua atmosfera. A maioria dos itens do jogo foi escaneada na zona de exclusão real”, diz o diretor do jogo e CEO do GSC, Ievgen Grygorovych, que é casado com Mariia Grygorovych. 

“É um lugar de poder, que é excepcionalmente bonito em todas as estações – e ainda assim sempre parece diferente. Você pode ver em primeira mão como um lugar, abandonado pelos humanos devido a um desastre causado pelo homem, foi recuperado pela natureza. As árvores crescem, as flores desabrocham, mas agora sem pessoas. Não é este o cenário perfeito para retratar um mundo pós-apocalíptico?” 

Grygorovych vê a zona como outro personagem do jogo. Ele pode estabelecer regras, fazer com que todos morram ou se machuquem e criar fenômenos especiais, como anomalias, arqui-anomalias, mutantes e radiação. 

“Qualquer um pode se imaginar pegando um trem, avião ou ônibus para a zona de exclusão e se tornando o personagem principal. Eles não têm nenhuma habilidade especial”, diz Ievgen Grygorovych. “Esse estilo narrativo permite que qualquer pessoa se conecte com o personagem e sinta que poderia estar no lugar dele. Isso torna a história mais imersiva e pessoal.” 

“Coisas importantes nunca são fáceis” 

Meses antes de Mariia Grygorovych chegar ao mundo, sua mãe fugiu de sua casa perto da usina nuclear de Chernobil  depois que o desastre a fechou em 1986, temendo os efeitos de vazamentos de radiação em sua filha ainda não nascida. 

Quase 36 anos depois, Grygorovych, enquanto liderava a produção de S.T.A.L.K.E.R. 2 como diretora criativa, também decidiu deixar sua casa na Ucrânia. Desta vez, foi por preocupação com a segurança não apenas de sua família, mas de GSC – sua família escolhida. 

“Essa história influenciou minha visão da vida. Porque nenhum sistema pode ser mais importante do que as pessoas”, diz ela em “War Game: The Making of S.T.A.L.K.E.R. 2”, um documentário aprofundado baseado na jornada sem precedentes do estúdio para completar o jogo em circunstâncias tão difíceis.   

“Temos uma responsabilidade para com nossos funcionários: se começarmos algo, faremos até o fim”, diz Grygorovych no documentário. Coisas importantes nunca são fáceis.” 

E para a equipe do GSC, não tem sido nada fácil nos últimos dois anos. 

Mykyta Horodyvskyi (Foto de Jamie Florance) 

Feito pela Ucrânia, feito para o mundo  

Depois que a equipe começou seu trabalho em Praga, a missão cultural do jogo ganhou mais força, mostrando o orgulho ucraniano por meio da música, arte, linguagem e narrativa.   

“Queremos oferecer um produto ucraniano verdadeiramente cultural em todo o mundo e essa é uma motivação totalmente diferente”, diz Mykyta Horodyvskyi, gerente de comunidade e mídia social da GSC. 

“Queríamos deixar claro que este é um jogo ucraniano sobre a zona de exclusão ucraniana de Chornobyl (o nome de Chernobil em ucraniano), feito por desenvolvedores ucranianos, por um estúdio ucraniano. E que através do jogo estamos compartilhando nossa cultura. Não estamos quebrados, estamos lutando e isso está representado no jogo.” 

Horodyvskyi, que ingressou na empresa em 2021, é jogador de PC desde a quarta série e se lembra de jogar S.T.A.L.K.E.R. original – embora, quando menino, tenha sido tão assustador no começo que ele teve que pedir a um amigo para vir e ajudá-lo a navegar pelas telas escuras e monstros. (A classificação para a sequência é de 16 anos no Brasil).

A vida real o dessensibilizou até certo ponto desses medos da infância. Sua família fica a cerca de 64 quilômetros da linha de frente, perto o suficiente para ouvir o bombardeio de artilharia. Seu pai mostrou a ele uma foto de um foguete que atingiu seu jardim no campo. Seus pais são voluntários, visitam os feridos em hospitais, entregam suprimentos e cuidam de seus avós em cadeira de rodas. 

“Ofereci a eles a opção de se mudarem para Praga, mas eles estão crescidos e, se não quiserem, não vou forçá-los”, diz ele. “Eles têm um apartamento lá, carro, trabalho, amigos. Meu pai até queria se juntar ao exército, mas foi rejeitado porque tem mais de 60 anos. 

Horodyvskyi fala com sua família todas as semanas e verifica regularmente os ataques de drones. Uma vez, ele estava assistindo a transmissões ao vivo de mísseis atingindo alvos e um chegou perigosamente perto do apartamento de sua família. 

“Você se acostuma com as partes mais aterrorizantes. Eu desejo que ninguém jamais experimente isso. Ninguém deve se acostumar com isso. Nossos pais e amigos estão vivendo em perigo todos os dias”, diz ele. “Torna-se uma coisa tão comum, o que é tão ridículo.” 

Belema Franklin George, gerente de relações públicas e marketing da GSC, está na empresa desde 2018. Aos 29 anos, ele tem quase a mesma idade do estúdio, que celebrará seu 30º aniversário em 2025. Ele viu a empresa crescer de 30 pessoas para mais de 400. 

Ele acorda todas as manhãs e percorre as notícias para ver se algo de ruim aconteceu durante a noite. 

“Algo ruim está sempre acontecendo”, diz ele. “Mas se sua família está bem, está tudo bem. Agora posso me levantar e ir. Não sinto falta das coisas físicas. Sinto falta da família. Tivemos um Natal muito bom antes de partirmos, um dos melhores. As memórias, elas ajudam.” 

Aqueles que trabalham no jogo e ainda estão na Ucrânia experimentam muito do que a família e os amigos que ficaram para trás estão passando. 

“Todos que permanecem lá enfrentam dificuldades inimagináveis diariamente”, diz Ievgen Grygorovych. “Ficamos arrepiados quando alguém fica longe do teclado por muito tempo, esperando silenciosamente que nada de sério tenha acontecido. É surreal que perguntar se seus colegas estão seguros tenha se tornado parte da rotina diária.” 

Assim como mudou suas vidas, a guerra também mudou alguns aspectos do jogo. 

“Em um nível prático, certas decisões criativas precisavam ser revisitadas”, diz Mariia Grygorovych. “Por exemplo, o som de uma sirene desencadeará TEPT em qualquer ucraniano, e as sirenes fazem parte do jogo desde o início do desenvolvimento. Tivemos longas discussões sobre como abordar esses elementos. Além disso, algumas cenas, diálogos e monólogos agora parecem diferentes por causa do contexto em que o mundo se encontra.” 

Há paralelos com a forma como Ievgen Grygorovych descreve o jogo e como suas vidas se desenrolaram nos últimos dois anos: “Uma saga sobre indivíduos que enfrentam circunstâncias complexas que evoluem, aprendem e descobrem as principais virtudes humanas, como liberdade, responsabilidade e empatia. Por meio de escolhas pequenas e significativas, os jogadores se desenvolverão e mudarão junto com os personagens da história. No final, eles serão transformados, assim como o personagem principal.” 

Não há como as equipes do GSC se desconectarem da guerra, mas estão encontrando consolo em suas experiências e objetivos compartilhados. 

“Estamos todos juntos agora, precisamos nos concentrar nisso”, diz Horodyvskyi. “E estamos fazendo o jogo. Essa é, obviamente, a principal prioridade. Mas ajudar uns aos outros, especialmente aqueles que estão em Kiev ou na Ucrânia, também é a prioridade.” 

*Enquanto Chernobil é a grafia em português estabelecida do local do famoso acidente nuclear, o estúio GSC prefere usar a grafia ucraniana Chornobyl.

**Matéria originalmente publicada no blog Microsoft Source (em inglês)